Preto, pardo, branco, indígena e amarelo. Essas são as categorias de cor ou raça utilizadas pelo IBGE para classificar a população brasileira e, dentro delas, existem milhares de variações possíveis.
Em um país tão miscigenado quanto o Brasil, é difícil aplicar com exatidão os conceitos raciais utilizados em outras partes do mundo. Cada país tem seu contexto histórico específico que moldou a maneira como a população se enxerga e é socialmente reconhecida. No Brasil, é comum que as pessoas se identifiquem com múltiplas categorias, criando uma realidade única em relação à raça e etnia.
Essa complexidade se torna ainda mais evidente quando comparada com o modelo racial dos Estados Unidos. Lá, por exemplo, a categorização tende a ser mais rígida e menos aberta as particularidades. Enquanto no Brasil alguém pode se declarar branco, pardo, ou preto, nos EUA muitos brasileiros são automaticamente rotulados apenas como “latinos” — um termo étnico, e não racial, mas que acaba englobando toda a diversidade de origens de países da América Latina. Em muitos casos, um brasileiro branco não seria reconhecido como tal nos EUA, sendo identificado exclusivamente como latino, independente de sua aparência ou autodefinição.
A identidade “coloured” de Tyla e o choque cultural com os EUA
Em 2023, a cantora sul-africana Tyla ganhou destaque mundial com o hit ”Water”, alcançando o topo das paradas e explodindo nas redes sociais. Junto ao sucesso, veio também uma enxurrada de discussões sobre a maneira como ela se identifica racialmente.
Em um vídeo postado no TikTok, Tyla aparece estilizando seu cabelo em Bantu knots, usando um colar tradicional africano com a frase estampada: “I am a coloured South African” — “Sou uma sul-africana coloured”. Ela explicou que isso significa que ela vem de muitas culturas diferentes.
Apesar da intenção simples de compartilhar sua identidade, o vídeo gerou polêmica, especialmente nos Estados Unidos. A palavra “coloured”, usada por Tyla, é extremamente sensível na cultura norte-americana por sua semelhança com “colored”, termo pejorativo associado à era de segregação racial (Jim Crow) no país. Durante esse período, bebedouros, banheiros e até mesmo assentos de ônibus eram separados entre brancos e ”pessoas de cor”.
A diferença de uma única letra — o “u” em “coloured” — foi ignorada por muitos, e Tyla passou a ser alvo de críticas e até ataques online. Poucos pararam para entender que, na África do Sul, “coloured” é uma classificação étnico-racial oficial, usada desde o regime do apartheid, que designa pessoas de ascendência mista. Tyla, por exemplo, tem origens preta/Zulu, irlandesa e Mauriciana/Indiana, e se identifica como “coloured’’ dentro desse contexto local.
O episódio ganhou ainda mais repercussão após a participação de Tyla no programa de rádio The Breakfast Club, onde o apresentador Charlamagne tha God perguntou o que significava ela se chamar de mulher “coloured’’ na África do Sul. Tyla preferiu não entrar no assunto, o que bastou para desencadear uma nova onda de críticas.
Em termos americanos, a artista poderia ser descrita como “mixed” ou “biracial”. No entanto, ela não é americana e por isso não utiliza as mesmas terminologias ou moldes identitários. Parte da polêmica surgiu porque, naquele TikTok, ela não se identificou como preta, o que levou alguns a assumirem erroneamente que ela estaria negando sua negritude.
Em resposta, Tyla esclareceu no X: “Não espero que me identifiquem como “coloured’’ fora da África do Sul por quem não se sentir confortável, porque entendo o peso dessa palavra fora do país. Mas, para encerrar essa conversa: sou tanto “coloured’’ na África do Sul quanto uma mulher negra. Como mulher desta cultura, é ‘e’, não ‘ou’.”
As palavras também cruzam fronteiras e mudam de sentido
A controvérsia em torno de Tyla escancara o quanto as noções de raça e identidade são moldadas por contextos locais e históricos. O que é uma afirmação de pertencimento em um país pode soar como ofensa em outro. Nesse caso, a palavra “coloured” não carrega o mesmo peso, e nem a mesma história, na África do Sul e nos Estados Unidos, mas foi o suficiente para discussões profundas nas redes.
Em um mundo cada vez mais conectado, o cruzamento de culturas exige mais do que tradução literal: pede compreensão histórica, sensibilidade e escuta. Entre interpretações apressadas e julgamentos públicos, fica evidente que nem toda identidade cabe nas categorias que conhecemos, ou que achamos universais.