Quando Tom Morello, guitarrista do Rage Against The Machine, diz que o trio irlandês Kneecap é “o Rage da nova geração”, ele não está falando sobre riffs pesados, mas, sim, de coragem e a habilidade ímpar de transformar indignação em uma catarse coletiva. Kneecap já vem há um tempo esculachando o governo, desafiando a polícia e denunciando censura, só que tudo isso rimando em gaélico.
Primeiramente, entendendo: quem são os Kneecap?
Diretamente de Belfast, Irlanda do Norte, o Kneecap é formado pelos rappers Mo Chara (Liam Óg Ó hAnnaidh), Móglaí Bap (Naoise Ó Cairealláin) e o DJ Próvaí (J.J. Ó Dochartaigh). O grupo surgiu em 2017 e o impacto não demorou: foi só o primeiro single, “C.E.A.R.T.A.” nascer, para que os três integrantes entrassem para o radar da polícia (literalmente). Os rappers pertencem a uma geração que nasceu logo após os Acordos da Sexta‑Feira Santa, época onde se encerrou oficialmente o conflito armado entre nacionalistas e unionistas.
Os três cresceram nas periferias de Belfast, falando gaélico e enfrentando a repressão cultural britânica. O idioma, por sinal, é uma das armas estéticas do trio: boa parte das rimas é em irlandês como uma espécie de afirmação política contra quem tentou silenciar a língua por séculos.
O que eles falam (e por que isso incomoda tanto)?
As letras do trio são recheadas de crítica social, humor cáustico e muita (muita mesmo) ironia contra o imperialismo britânico. Eles rimam também sobre violência policial, a crise habitacional, o trauma deixado pelos conflitos, a juventude de classe trabalhadora, repressão linguística e. basicamente, a reunificação da Irlanda. No entanto, eles fazem isso rindo.

Exemplo disso são canções como “Get Your Brits Out”, “Fenian Cunts” e “H.O.O.D”, que trazem batidas dançantes que, se você não conhece o grupo, vai deixar passar batido todos os versos afiados, palavrões e provocações explícitas. O nome da banda, “Kneecap” (joelho), é uma referência direta a uma tática paramilitar durante os Troubles: o tiro no joelho dado como punição.
Com a mesma naturalidade que escancaram toda essa violência, eles soltam frases como “kill your local MP” e mandam sem pudor bandeiras do Hezbollah no palco – o que, logicamente, não caiu bem com a polícia britânica e menos ainda com a extrema-direita.
Sucesso meteórico e contando (e as censuras)
Kneecap lançou seu segundo álbum, Fine Art, em junho de 2024, e arrancou elogios da crítica e nota 76 no Metacritic. O disco chegou sem cerimônia no segundo lugar das paradas irlandesas, e vale mencionar que uma das coisas que chamou atenção foi o filme “Kneecap”, cinebiografia premiada no Festival de Sundance, onde podemos assistir próprios integrantes interpretando a si mesmos, ao lado de Michael Fassbender. O longa foi o primeiro falado majoritariamente em irlandês a estrear no festival, e já está cotado para representar a Irlanda no Oscar.

É óbvio que o sucesso não vem sozinho, ainda mais com artistas que botam o dedo na ferida. Logo, tamanha ascensão tem sido proporcional à perseguição. Na edição de 2025 do Glastonbury, o governo britânico barrou a transmissão ao vivo do show da banda, após um pedido direto do Primeiro‑Ministro.
Em abril, no Coachella, críticas abertas à política dos EUA e ao apartheid israelense levaram ao cancelamento de futuras apresentações no país. Recentemente, o governo húngaro baniu a banda do festival Sziget, acusando-os de “apologia ao terrorismo”, uma decisão que os membros do grupo chamaram de “censura autoritária disfarçada de moralismo europeu”.
E por que você deveria se importar?
Com tudo isso, já deu pra notar que o grupo não veio pra fazer só um barulho bonitinho para você ouvir num almoço em família em pleno domingo (a não ser que sua família seja muito mente aberta e esteja genuinamente curiosa sobre o que você vem ouvindo). O grupo surge num momento em que o Reino Unido tenta reprimir qualquer voz que ameace o status quo, e fazem isso com a mesma coragem e cara de pau de bandas históricas da juventude dos seus pais, tios ou primos que já foram descolados. A diferença é que fazem isso em irlandês, com memes, beats e um senso de humor bem – BEM – ácido.
E com isso, novamente chegamos àquele momento de bater na mesma tecla e dizer que: enquanto muitos artistas preferem a neutralidade confortável, o Kneecap vem com o pé na porta e te desafia a escutar, e entender, mesmo que você não fale gaélico. Mas, convenhamos que tem muita gente que também não entende inglês, mas faz um esforço sem igual para traduzir cada linha do seu fave, né? Então por que não dar essa chance a um trio que, além de boas rimas, entrega conteúdo, contexto e consciência em cada verso?